Face Sonora e Maquiagem Musical


Este texto foi palestrava no MIS de São Paulo enquanto o compositor era maquiado com aparelhos que geravam sons granulares, realizado com Vivian Caccuri.
BASE
Que minhas palavras não me maquiem como os belos e grandes automóveis fazem com o tráfego.
Um texto maquia um verso, a memória maquia o devir, a música maquia o som.  A pele é o mais profundo abismo sobre o qual lançaríamos os dados de nossas pontes semiônticas. Alô base, responda!
Uma face é um rosto sem rosto.
A interface é o ruído entendido em seu silêncio, assim como a maquiagem é senão uma sujeira aceitável.
Um rosto e seus traços de rostidade (um estilo musical e os movimentos ecléticos que o atravessam) são resistências de um ego social no corpo (através da tensão muscular e tátil), que tornam seus segmentos controlados (ocular e oral) em palcos da auto representação política ao impedirem a fluência dos livres movimento das correntes energéticas dos modos desencouraçados da face (aural e olfativo). Uma desterritorialização do corpo implica uma reterritorializacão no rosto.
Há uma sobrecodificação (metaprogramação neuroimagética) pela hegemonia do utilitarismo da face e do som (iconoclastia hedonista musical, hierarquia das alturas melódicas, narcisismo semântico dos dados impuros). Tal máquina de rostidade (produção social da musicalização e do rosto), efetua uma rostificação de todo o corpo (uma musicalização de toda a escuta), de seus entornos (you are your playlist) e de suas funções. Se o rosto produzido socialmente é uma política, desfazer o rosto também será uma política (se a música produzida socialmente é uma economia, desfazer tal música também será um produto de mercado).
Mas eu hei de maquiar estas palavras com as faces mortas dos ídolos, como se cada nome puxasse nós e os nervos capilares do ouvido mais próximos à garganta.


A síntese granular da música eletroacústica se baseia no delírio quântico atômico, erotismo de areia, filé à milanesa, devir rapé da escuta. Do pó ao só, do grão ao drão, do um ao bum. Cheira o cangote da pessoa ao teu lado. É cheiro de gente ou um casamento químico?
Cada torno da roda das modas, ou as giras das ninfas, por exemplo de Eco a Calypso, são sinos tocando contas de vidro.
Baudrillard fala de três estupros pro nascimento do humano: trabalho, consciência da morte, repressão sexual. O epicentro da artificialidade se põe entre nosso desejo contínuo pela objetificação de nossas subjetividades, Genet come margaridas antes de vender seu corpo de novo, carrega as mortalhas de seus afetos em nome de uma autopoiése mais. Eros ergo Muse.
A prostituição por si só permitiu o enfeite, salientando o valor erótico do humano feito objeto e serviço. Um tal enfeite é, em princípio, contrário ao movimento de negação do enlace sedutivo da mulher que se nega para gerar a caça ao objeto de si por parte do homem. A prostituição de umas determina o esquivar-se de outras…formas de uso do rosto. No princípio a prostituição era só uma outra face do casamento, chamar-se-ia dom ou dote.
Não é de se espantar que os mais antigos traços de civilização sejam a maquiagem funerária e a prostituição. O que se maquila num rosto, mesmo vivo, é seu inevitável cadáver e são os vermes que gostaríamos de realmente seduzir com a mais descarada nudez das vestes.
A estratégia camaleônica de Bowie, em sua dança pelas ondas tendenciais dos nichos da moda, o campo hipermoderno da escuta eclética, tem uma objetificação direta no entrincheiramento urbano do autismo. O rádio(e seus ipods provenientes) é uma tecnologia de guerra assim como a maquiagem rajada alternou do verde vietcongue para o cáqui jogador de golf iraquiano. Mudança similar da do fim da guerra fria, e a mudança do paradigma dos espiões para o dos terroristas, de Mata Hari a Wafa al-Bas. Quando o terrorist-chic virará tendência em Paris? O soldado está para a santa em pedaços no passo do gato como o filósofo para a puta sem clientes.
Banhos de sêmem no topo das pirâmides, já romanas. Quem lamberá as feridas de Orlan? Quem juntará os cacos de Hans Bellmer, Cindy Sherman? É por rosto mercurial, tronco salgado e barbatanas sulfúricas que o canto das sirenes atravessa as eras e as bocadas. É uma emergência, o toque à pele. São memórias futuras calcinando em teus poros as cores que nem teus olhos puderam compreender, algumas fodem e procriam em tua língua, algumas outas, compreensões de cicatrizes. Súbita efêmera sensação da realização da essência do fogo: Epifania.

CORAÇÃO
Tudo que tiveste imensa vontade de dizer e não pudeste expressar em palavras, depois o mostrará tua face.
Elke Maravilha, nada em nuvens de sombras coloridas e constela os céus de luz fria com estrelas de rímel. Pousa na beira de estrada caiada e canta para Novalis que gira a bolcinha com Burroughs… Cantos texturados de mútua sedução compõem a carta que ele tem em mãos, manchada como seus olhos. Fala de um Ulysses que não florecerá, homem de esperas e partidas. Choro de ninfa puta “Eles nunca ficam, eles não compreendem… e vão.”. Mas sempre um sorriso tremulando a espinha avisa a face a desenhar-se novamente ao coro do corpo.
Visage! Berio desnuda Cathy Barberian apenas para vestir suas cordas vocais com seus cálculos, lembrá-la da Enlil animal peludo. Lembremos que Poser é um software de avatares. Assim como o teatro se torna a pátria nula das máscaras de transparências após Godot. E perto destes cantos, Peter Grimmes é pouco mais que Pinóquio, corpo de madeira em cordas… E jamais nos esqueçamos que a própria forma vitruviana do corpo carrega em si sentimentos dos mais profundos, Casanova nos gestos mais sutis de desespero apaixonado ao maquiar as sombrancelhas da amada criatura apenas para poder desenhar-lhe olhos. Criamos uma música para que alguém ouça não apenas a nós, mas como nós.
Desde o pierrô lunar, títere maquilado dos influxos do íntimo até os arlequins solares do glam; é movida a sangue de purpurina e gasolina, a vaidade dos Golem.
No frenesi de maquiar cada encontro imediato no enredamento útil do netflerting, faríamos da alteridade não mas que um espelho de youtube.
Como vocês cozinhariam em um caldeirão de cera, se quando aquecido este também se põe a derreter? E ainda, como haveriam de pintá-lo?
Fez questão de deixar os lábios borrados depois do beijo, dormiria na cozinha suja e queria a nudez plena do descaso de si em mim. No dia seguinte de rosto lavado houvera de recitar Hilda Hilst em inglês enquanto cambaleava pela Liberdade.

SOMBRA
Se a não fossem de fluxos em decantações os corpos e a técnica hefaística quisesse de fato criar a perfeita prisão para as musas, o museu, haveria de mister dispô-lo entre um salão de belezas e uma academia de gimnopédias com mobília musical, como que ria Satie. Todo erigido em carbono, para facilitar a datação de nossas vaidades e luxúrias.
Olhava dentro de meus olhos e ouvia o tremular enquanto dormiu. Algo não foi compartilhado. Some storms are better without shelter. A cor da flor não escorre à chuva.
Ainda haverá um MAT, museu do aroma e do toque. Flores de plástico com borrifadores de aromas sintéticos criarão os âmbitos de nostalgia de certas intoxicações, do chocolate às caixas envernizadas. O hall das fezes históricas, de Beuys a Wharol. Estudiosos farão teses sobre a consistência e o aroma destas baseados nos hábitos declarados e nas imagens de arquivo. Em algum canto talvez haja uma pele para quando já não nos lembrarmos do encontro incondicional.
Beijou meus cílios e apertando a palma da mão contra meu peito, riu alto: mulher! Borrando o seu batom respondi enquanto tocava sua buceta: androgênio…
Se o artista aponta os problemas sociais é só para saber-se também a maquiagem destes. A simpatia da comcunbina para com o eunuco. Nas palavras de Cazuza: “Eu sou burguês, mas sou artista.” Aí vocês suspiram que gostaram ou não da obra e eu pergunto sobra as suas enquanto me retoco para o próximo concerto.

BLUSH
A rostidade está inscrita na linguagem como os estilos musicais inscrevem fronteiras à escuta. Ser babyface implicará a capacidade de representar o papel de barbie-modelo-amante subdominante ouvindo powerpop de girlsbands e emo, talkingface dará conta de uma pessoa crível que poderá jogar como o político-vendedor-informante ouvindo jazz fusion classic rock; scarface nos faz voltar aos guetos e aos submundos mafiosos da vida lôca do lado de lá da ponte do gangsta rap bolero spirituals; fuckingface tem sua tradução direta ao português assim como o pancadão revirou electrochic parisiense.  Obra de arte sob ar condicionado e a sexualidade maniqueísta(e aqui cito o gnóstico Manis). Como pode a diferença, ou ainda os trânsitos de sexualidade, fazerem alguma diferenciação ou gestar um transe?
Vocês! Todos vocês se despuzeram a sair de casa e vir ao museu e se prostam com interesse diante nossos sons, mas quantos estariam interessados em nossos aromas e secreções?
Uma das revistas de maior tiragem no Brasil (Caras) segue neste mesmo sentido, um paradigma de rostidade careta indicando sempre os shows de MPB mais badalados e chics. Multiplicação da presença das caras e do rosto em lugares públicos pela propaganda hiperindustrialmodernista (assim como a multiplicação ad infinituum das músicas de fundo). De um lado os visíveis (e audíveis): os novos nobres, os conhecidos VIPs que tem acesso à tela e sobrepassam as fronteiras do jabá e do networking; do outro: os desconhecidos (os olvidados das museas), os ignorados pelos lobbys da imagem e do som. Nos âmbitos artísticos (casta estética) vivemos uma rostidade mais discreta, ainda que não menos influenciada pela maquinaria sociotécnica que atravessa mercantilmente a sociedade (fetichização do entreface), buscando impôr a expressividade codificada (enredamento das impregnações dos modos de escuta e soagem).
Imaginem a crise de aprendizagem do político que logo depois de ser maquiado em sua fisionomia, estudado e treinado durante horas em sua linguagem e em seu discurso, em seu sorriso e em seus gestos, recebe como último conselho de seu assessor de imagem e voz, um momento antes ir ao ar: “Bom agora, por favor, seja completamente natural e espontâneo”.